domingo, 24 de maio de 2009

Libertação



Era uma mulher.

Via-se no espelho nua e confirmava a afirmação repetidas vezes. Cada pedaço de seu corpo gritava o feminino, escancarando sentimentos. Suava progesterona. A roupa separada no pé da cama, fora escolhida cuidadosamente. Os sapatos vermelhos de salto alto ressaltavam o formato alongado de suas pernas. A meia calça protegeria do frio e se tornaria um atrativo. A saia, meticulosamente costurada para cobrir a porção certa de carne, caia-lhe perfeitamente.

Era uma mulher.

Abotoou a blusa pacientemente. Cada botão trazia um novo pensamento. Cansada dos problemas gritando em sua cabeça, ligou o rádio sorteando a música. Num ritmo dançante cobriu seus lábios com vermelho sangue e olhando o resultado final, no espelho manchado pela umidade dos demorados banhos, concluía:

Era uma mulher.

A bolsa preparada pelas precauções já esperava perto da porta. Seus pensamentos fluíam num redemoinho gingante, misturando-se com perfumes e lembranças. Sabia que aquela não era a melhor saída, mas precisava provar num ato de imaturidade toda aquela pesada maturidade. Saiu sem rumo e sem relógio. Não viu a hora passar.

Amanheceu.
O sol batia tímido e o despertador tocava esquecido. Na casa, o cheiro de noite ainda pairava leve, desaparecendo. Os rastros de choro se misturavam com maquiagens corretivas. Quando chegou, o despertador já havia cessado as exaustivas tentativas do despertar vazio. Sentia-se como a casa antes de sua chegada, vazia. O choro então se rompeu com o silêncio. Estava só e chorava, sozinha.

Como uma criança.




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Estou dando um tempo para os textos das obras de arte. Analisar é cansativo e sempre me pergunto se é válido. Acabo me contradizendo quando defendo que o importante é senti-las. Claro, depois de uma longa conversa com o quadro, acabamos entendendo melhor tanto a tela, quanto nós mesmos. Mas isso não é coisa que se faça com pressa e tempo é o que mais me falta agora. (Infelizmente tenho sérios problemas com organização).
Tanta coisa que não sei por onde começar! E o relógio passando!
Volto, espero que melhor.

Quadro: Maurits C. Escher - Libertação

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Sandro Botticelli (?1445-1510)

"Sua arte foi um gesto de fé, uma visão mística, uma forma de chegar a Deus"
Coleção "Gênios da Pintura" - Volume I

Alegoria da Primavera

Alessandro di Mariano di Vanni Felipepi, Sandro (diminutivo de Alessandro) Botticelli (alcunha atribuída ao pintor, de "botticello" que significa "barrilzinho") se aproxima mais de Frá Angélico que os pintores de sua época (Leonardo da Vinci, Michelangelo e Raffaello). Isso se deve ao fato do pintor defender um ideal cristão, mesmo apresentando elementos clássicos em sua obra. Além disso, Botticelli foge de regras rígidas de perspectivas, expressando em sua pintura uma beleza interior, não retratando a realidade exterior. Essa realidade interior é mística e simbólica, aproximando-o dos pintores medievais. "É o pintor de seu século que mais se afasta da experiência dos sentidos" (Coleção "Gênios da Pintura"). O neoplatonismo defendido pelo artista liga sua arte ao belo e o belo é determinado por Deus, portanto, revelar a Arte e a Beleza clássica é um dom divino, aproximando o pintor a Deus.

O nascimento de Vênus

No quadro Alegoria da Primavera (1478 - Galeria Uffizi, Florença), o artista retoma elementos da antiguidade clássica, a perspectiva é colocada num papel secundário e Botticelli não se preocupa em ser fiel à anatomia das personagens, buscando a beleza nas curvas, ritmo e leveza da pintura. O mesmo ocorre em O nascimento de Vênus (1484 - Galeria Uffizi, Florença), em que a deusa Vênus pode simbolizar a verdade e a pureza. Uma leitura dessa obra é a comparação da deusa com a alma cristã, que emerge das águas do batismo. A busca da leveza de Vênus é observada, além de outros fatores, nas curvas de seu corpo, reforçadas pelo ângulo do pescoço e curvatura de seu tronco, como se o sopro dos deuses estivessem levando-a. Prova-se o rompimento de Botticelli com o elemento naturalista da arte renascentista, já que a proporção anatômica não é caráter fundamental em sua pintura.

No final de sua vida, numa época de grande fervor religioso, Botticelli se dedica a pintura de temas religiosos, com certa inquietude e maior abandono dos valores renascentistas como pode ser observado na tela Piedade (aproximadamente 1490 - Velha Pinacoteca, Munique) e na tela Natividade (1501 - Galeria Nacional, Londres).



Piedade

É importante notar que a arte de Botticelli está na busca da beleza, seja ela clássica ou medieval, sempre retratando realidades interiores, não seguindo regras rígidas de sua época, descobrindo o belo em cada elemento e pintando, com amor e fé, em busca de uma aproximação com Deus.


Natividade

Botticelli nos serve de exemplo, então, já que buscamos verdades que acreditamos muitas vezes estar em dados externos, em livros ou em tendências. Esquecemos de nos vasculhar interiormente e se isso acontece, sentimos medo de expor para o mundo a nossa realidade interior. Botticelli a expôs, tornando-se um dos maiores pintores que conhecemos. Me pergunto o que cada indivíduo guarda dentro de si, e o que isso pode acrescentar para o mundo. Na época em que a ciência nascia, Botticelli abandonou as regras que surgiam para ser fiel a seus sentimentos e convicções. Será que nós somos fiéis as nossas convicções e sentimentos? Ou apenas acreditamos em fórmulas que nos são colocadas como verdade? Seguimos tendências sim, porque vivemos em sociedade. Botticelli provavelmente também foi influenciado por sua época, mas conseguiu ser verdadeiro através de sua arte.

Qual o meio de atingir nossa Verdade?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Fra Angélico (?1387-1455)

Anunciação

Guido de Pietro ao ingressar para o convento dos Dominicanos, passa a se chamar Fra Giovanni, e por sua devoção e humildade foi apelidado, após sua morte, de Angélico. Sua obra apresenta tema estritamente religioso, dialogando com a arte medieval, mas com traços renascentistas e naturalistas que não afetam o conteúdo. No afresco Anunciação (Museu de São Marcos), Fra Angélico tem grande preocupação com as regras de perspectivas e espaço retratos, como pode ser observado nos detalhes das colunas, na arquitetura do local e também na porta ao fundo da cena, que adiciona profundidade à imagem. Quanto às personagens, a inexpressividade dos rostos indica o padrão clássico da beleza renascentista. A neutralidade no rosto da virgem reforça sua humildade e obediência diante dos planos escolhidos para ela. O anjo reconhece a importância da mulher (já santa) diante da humanidade e faz reverência. Maria, por sua vez, mostra-se serva de Deus, apesar de ser a escolhida diante de todas as mulheres, e não se envaidece, reforçando a escolha certa de Deus. Fra Angélico retrata, portanto, a santidade de Maria através de sua inexpressividade, já que para um ser humano repleto de sentimentos, seria impossível receber tal notícia com tamanha obediência e fé. É atingida, com isso, a busca renascentista de se alcançar a beleza para se aproximar de Deus.


"Em busca da pureza, fez de sua arte um postulado. E usou as conquistas da Renascença para exaltar a fé".
Coleção "Gênios da Pintura" - Volume I

domingo, 10 de maio de 2009

Giotto (1266-1337)

A Prédica diante de Honório III

"Seus santos eram homens.
Sua realidade, o mundo.
Sua riqueza, o espírito.
Sua lição, a humildade."
Coleção "Gênios da Pintura" - Volume I


Ambrogiotto di Bondone pintava os santos humanizados, diferenciando-se da arte medieval. A santidade não eliminou as características humanas de suas pinturas. Quebrou a rígida hierarquia da pintura medieval e bizantina, deixando o humano como figura principal, adicionando perspectiva e pintando como ambiente o mundo real. O ambiente, por sua vez, era moldado segundo o plano principal: o homem, deixando árvores e montanhas num contexto secundário (e portanto, menores). A vida não é estática, e os santos de Giotto também não. Apresentam expressões e ganham além da humanidade, individualidade. No quadro A prédica diante de Honório III (Igreja de São Francisco, Assis), além da humanidade das figuras, o pintor retrata a arquitetura gótica como ambiente.



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Empolgada com Renascimento, resolvi escrever pequenas considerações sobre cada artista estudado. Publicarei a bibliografia utilizada no final da "série" de quadros. Comentem informações ou correções! Os textos são simples, muitas vezes um resumo do que li, mas foram escritos com paixão, paixão do estudo de história da Arte, paixão pela Arte.
É isso,
beijos!