domingo, 28 de junho de 2009

Para Mia Couto.

Quando me apresentou o livro, fez o mesmo ao professor de literatura. O simulado na semana seguinte veio presenteado logo na primeira questão. Errei, por falta de atenção ou surpresa. Nunca errara nenhuma questão de português e aquilo me causou uma pequena revolta – contra o autor, até então pouco conhecido, e aquele que apresentara.
O tempo passou e nunca mais vi nas provas o nome do escritor, mas continuava o contato indireto, sem nunca ter lido.

Tarde de autógrafos.
Comes e bebes na Livraria Cultura após uma aula de redação nunca é mal para alguém que quer mudar a rotina. Veria aquele quem me apresentou o livro e que tanto gostava da leitura. Depois de pagar os absurdos 2 reais num copo de água, entrei na palestra afetada por o que me rodeava.

Foi então que pensei em tudo aquilo que sempre remoí.

Já na fila dos autógrafos, pensei nas frases prontas de impacto. Tudo para ser diferente, tudo para me destacar, para provar que escrever um livro não lançava ninguém a patamares veneráveis. Sempre contrariada por aqueles que, com teses sobre literatura específica, tremiam por dentro ao pedir, face a face, uma assinatura.
“Como é ser tratado como conhecido por aqueles que você não conhece?” foi minha primeira frase. Desencadeou-se em mim uma sobreposição de lugares. Chegou-me a cabeça que a arte era conveniente. Imagine só, lançar um livro de sucesso e no mesmo momento, uma mobilização de papéis escreverem sobre o modo de alguém escrever. Era preciso desvendar o mistério da diferença, para que, de boca em boca, fosse contado os segredos ouvidos por terceiros e assim pudéssemos nos apoiar nessas sutilezas de caráter alheio.
Se o meu caráter for um retalho de segredos que ouvi, para me apoiar em comparações de esperança, quero então descobrir o que vem dentro desse pano, o que essa colcha esquenta, o que é meu.
E repelir os apoios, as fotografias, os autógrafos, a idolatria ou até mesmo a admiração, torna alguém insuportável.
Eu estava insuportável. Cada palavra que saía da minha boca era escutada por mim mesmo como se fosse de outra pessoa, uma bem chata, que não gostaria de encontrar mais.
A fila andou rapidamente e todo o raciocínio, interrompido pelas curiosidades da vida do autor, foi se formando e desfazendo num constante formigar interno, como se minha boca ordenasse ao corpo que saísse de tal contradição, mas ele – inerte – seguia no andar de bois.

Decidi, já em frente à mesa, não dar meu nome. A frase já pensada viria junta, mas todo o ensaiado não sai como o planejado, mesmo insistindo. Os flashs eram muitos, o olhar de espera também e acabei balbuciando um mal educado “só seu nome”. Ganhei um rabisco.
Pensei então em outra frase. Aquelas tardias que tentamos encaixar no tempo que já foi. Ah, se pudéssemos rebobinar a vida. Ela seria feita de frases e momentos brilhantes, perfeitos, imaginários.
“Só seu nome. Vou vender pelo triplo do preço depois”.
A emissão da frase foi um escândalo! O livro era presente, e o presenteador escutou tais palavras ofendido. Insuportável. Continuava, se possível, mais insuportável. Propus que o valor do livro seria devolvido, me restando o lucro. Assim, ele poderia comprar outro livro, que continuaria sendo presente! Insuportável...
“As palavras são as mesmas! Um rabisco não fará diferença.”
Depois do meu engolir das diferenças, de aceitar o fato de precisar contrariar pra provar quem eu sou, pensei na carta.
E o ensaio se tornou real. Talvez com algumas improvisações e alguma cor a mais, ou a menos. O mundo das idéias nunca é o mundo das palavras. Fui recitando e remoendo o primeiro parágrafo, a primeira frase. O resto sairia feito enxurrada.

O único problema que já previ antes (além dos outros que pensarei depois) é a forma de entregar tal carta.
Mas se não chegar, ficará como prova viva do que fui hoje.
Amanhã relerei e tudo será quebra-cabeça.
Que me remonte diariamente.

Agradeço, então, a palavra não lida, a presença imperceptível e o quebrar de cacos que me permitiu remontar tudo, ainda mais colorido.
25/06/2009

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O louco do piano.

Não fosse o cheiro de fezes, a música não o incomodaria.

Era de um ritmo impecável e sem perder o compasso repetia a melodia. O barulho do metrô lhe dava fundos metálicos para concertar. Aço no aço, segurava com um quase medo a fria barra de segurança, mesmo estando sentado.
Os olhares eram de repúdio. Num consenso imediato, o vagão reprovava o louco que ali cantava.

Desceu numa estação que não era a sua. Toda aquela reprovação misturava-se com o mal cheiro lhe causando enjoo. Pensou como era mais louco que o declarado, e como todo aquele fingimento era loucura. No trem seguinte, deu espaço a senhora que olhou com aprovação. O enjoo persistiu e percebeu que murmurava o ritmo circular.

Não fosse o piano ao fundo para lhe apagar os últimos traços de verdade, a sanidade o consumiria e ficaria ali, sem saber o porquê daquilo tudo.
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Still Life and Street - Maurits C. Escher

domingo, 7 de junho de 2009



I

Vivo nos intervalos,
no esperar do trem seguinte
90 segundos de consciência inconsequente.
Vivo no atraso,
na espera do próximo,
em instantes de mim mesmo
me encontrando pelos corredores,
lapsos de verdade.
Vivo na invenção do tempo
daquele que se perdeu e nunca mais voltou.
Espero pacientemente a vida
E a espera consome o tempo
o tempo que não existe
e nunca existirá na realidade.
Vivo no fragmento
daqueles instantes repelíveis
Estou no quântico
no não-tempo
na não-vida
no espaço
nas rusgas da realidade
no atrito entre aquilo que não foi, mas sempre será.
Perpetuo-me no pedaço
Sem saber o que é inteiro.


II


Infinitos são os espaços que encontro dentro dos menores fragmentos de tempo.
Me agarro a eles e existo.
Os temores cessam e a espera do futuro termina, pois este tempo começa.
O presente se funde com o que virá e vivo por completo, esbanjando integridade.
Recomeço o terminado e termino o inacabável. O ajuste de tempo se dá nesse gozo de vida, nesse interminar de cores, nessa infinidade de ações, na infindável verdade.
Inefável
.
.
.
.
.
.
.
Acordo em pedra. Em concreto. Em passado.
Presa no limite da passagem, na aresta do presente. Situo-me em minúsculas proporções e me afundo no criado.
Nas verdades criadas
Na realidade do passar dos segundos infinitos
E penso na finitude dessa criação
No material dessa criação
no elemento dessa criação
na divisão dessa
no limitar dessa
no afundar
concreto.



Quadro:
Convex & Concave - Maurits C. Escher